Dois fatos jurídicos chamaram a atenção nos últimos tempos em plena pandemia e serão capazes de gerar impactos trabalhistas e previdenciários nas empresas. Um deles foi a revogação da MP 905, que criou o Contrato Verde e Amarelo, e o outro foi a decisão do Supremo no julgamento de sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP 927 por entidades representativas de trabalhadores e partidos políticos, que suspendeu a eficácia do artigo 29 da referida medida provisória.
1 — Acidentes de trajeto e a natureza acidentária
Em relação ao primeiro deles, nos referimos especificamente ao artigo 51 da MP 905, que revogou uma série de dispositivos legais, entre eles o artigo 21, inciso IV, alínea “d”, da Lei 8.213/91, que assim dispõe:
“Artigo 21 — Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta lei:
(…)
IV – o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:
(…)
d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”.
Importante salientar que, com a Reforma Trabalhista ocorrida em 2017, houve alteração no § 2º do artigo 58 da CLT, excluindo do tempo à disposição do trabalhador justamente o período de percurso da residência até o local de trabalho:
“Artigo 58 — A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.
(…)
§ 2º — O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador”.
Ademais, antes mesmo do advento da Lei 13.467/17, o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) já havia entendido pela ausência de controle ou influência do empregador sobre os seus empregados quanto aos acontecimentos que ocorrem no percurso de ida e volta do trabalho. Tanto é verdade que houve uma alteração na metodologia de cálculo do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) através da Resolução 1.329/17, que retirou o acidente de trajeto do seu cômputo a partir de 2018.
O FAP é um multiplicador composto anualmente pelo Ministério da Economia com base nos dados dos dois anos anteriores e no histórico acidentário das empresas. É calculado por estabelecimento comercial e aplicado em conjunto com o Risco Ambiental do Trabalho (RAT), que são alíquotas de tarifação coletiva por subclasse econômica que variam de 1% a 3%, conforme o risco oferecido aos trabalhadores. O RAT, por sua vez, é incidente sobre a folha de salários das empresas para custear aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho.
Pela metodologia do FAP, as empresas que registrarem maior número de acidentes ou doenças ocupacionais pagam mais o RAT. Por outro lado, existe uma bonificação das empresas que registram menos acidentes e doenças ocupacionais, sendo possível reduzir até pela metade a tributação.
Tanto em razão da decisão do CNPS, quanto pela nova legislação trabalhista, parte da doutrina passou a entender que o artigo 21, IV, “d”, da Lei 8.213/91, teria sido tacitamente revogado pela Lei 13.467/17, já que a legislação previdenciária não poderia conceituar como de trabalho um acidente de trajeto em contradição com a própria legislação trabalhista, que após a Lei Reformista afastou esse percurso como sendo tempo à disposição do empregador.
Sendo assim, a MP 905 veio para trazer segurança jurídica e pacificação social diante das discussões que já se iniciavam em razão da existência de normas colidentes, já que a conceituação acidentária de um determinado acidente é capaz de gerar algumas consequência de ordem social e fiscal.
Como já existe norma do próprio CNPS afastando o efeito fiscal do acidente de trajeto, conforme vimos acima, com a revogação da MP 905 pelo Presidente da República, o trabalhador que vier a sofrer acidente durante o trajeto, portanto, voltará a ter garantidos alguns dos seus direitos sociais acidentários: I) estabilidade por 12 meses após a cessação do auxílio-doença decorrente de acidente de trajeto; e II) depósitos do FGTS durante o período de licença por acidente do trabalho, devido em decorrência da Lei 8.036/90.
Sendo assim, podemos dizer, neste cenário, que as alterações normativas conduziam para o entendimento de que o acidente de trajeto não deveria ser considerado como acidente de trabalho e a MP 905, em certa medida, pacificava essa questão ao revogar o dispositivo ultrapassado e colidente com novo entendimento. Estava, finalmente, afastada a necessidade de pensar a questão pelo prisma da hierarquia entre as normas. Com sua revogação, volta-se o debate e se faz ainda mais urgente a atuação legislativa para adequação do arcabouço jurídico.
2 — Ônus da prova e a Covid-19
Já em relação ao artigo 29 da MP 927, que estabeleceu que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam considerados como equiparados a doenças ocupacionais, exceto quando comprovado o nexo de causalidade, traz luz a outro tipo de discussão: aquela que gira em torno a tecnicidade das decisões.
Durante a vigência do referido dispositivo, em outras palavras, haveria a necessidade de demonstração que a contaminação do empregado pela Covid-19 se deu em razão de alguma ação ou omissão do empregador durante o exercício das funções dos empregados.
Entrementes, após recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ADIs em que se discute a constitucionalidade da MP 927 frente à pandemia de Covid-19, foi acolhida pelo plenário a suspensão da eficácia do artigo 29 e, com essa decisão, a demonstração de que a contaminação do empregado por Covid-19 não se trata de doença ocupacional passou, doravante, a ser ônus de prova, em tese, de parte do empregador. Contudo, propõe-se aqui que a solução da controvérsia passe pelo enfrentamento da legislação previdenciária.
Com efeito, o artigo 19 da Lei 8.213/91 define o acidente do trabalho como sendo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. Imputa-se à empresa, portanto, na forma da lei, a responsabilidade pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador.
Já o artigo 20 do mesmo diploma legal equipara a acidente de trabalho: I) a doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo órgão ministerial; e II) a doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente. (g.n.)
Assim sendo, apenas em caso excepcional, nos exatos termos do § 2° do citado artigo 20, a Previdência Social deve considerar como acidente do trabalho a doença não incluída na relação oficial por ela elaborada. E, mais, necessário fazer constar que resultou a doença das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente.
O § 1° do artigo 20 da lei previdenciária, por sua vez, elenca taxativamente as causas que não devem ser consideradas ocupacionais, assim prevendo:
“§ 1º — Não são consideradas como doença do trabalho:
a) a doença degenerativa;
b) a inerente a grupo etário;
c) a que não produza incapacidade laborativa;
d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição”. (g.n.)
De outro norte, o artigo 21 da Lei 8.213/91 enquadra como acidente de trabalho a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade e, mais, o artigo 21-A atribui à perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a competência para caracterizar a natureza acidentária de incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico.
Fazendo a hermenêutica com os dispositivos acima citados, podemos concluir que, via de regra, a Covid-19 poderia ser tratada como doença do trabalho nos termos do artigo 20 da Lei 8.213/91, que exige a demonstração de que a ela foi adquirida em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente. Como regra geral, contudo, não há uma presunção iuris tantum de estabelecimento de nexo em razão de pandemia. Pelo contrário, existe uma exclusão legal prevista nos casos de doenças endêmicas.
Dito disso, em relação ao coronavírus e à pandemia da Covid-19, é correto afirmar o afastamento da presunção de que a doença não seja ocupacional, podendo, porém, o empregado acometido pela Covid-19, se houver prova nesse sentido, ser considerado como doente ocupacional, invertendo-se o ônus da prova.
Para tanto, seguem as definições de “surto”, “epidemia”, “pandemia” e “endemia”, todas elas extraídas do site do Núcleo do Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes, que é uma parceria entre a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o Ministério da Saúde [1]:
Surto: Acontece quando há um aumento inesperado do número de casos de determinada doença em uma região específica. Em algumas cidades, a dengue, por exemplo, é tratada como um surto, e não como uma epidemia, pois acontece em regiões específicas (como um bairro).
Epidemia: Uma epidemia irá acontecer quando existir a ocorrência de surtos em várias regiões. A epidemia a nível municipal é aquela que ocorre quando diversos bairros apresentam certa doença; a nível estadual ocorre quando diversas cidades registram casos; e a nível nacional quando a doença ocorre em diferentes regiões do país. Exemplo: em fevereiro de 2020, 20 cidades tinham decretado epidemia de dengue.
Pandemia: A pandemia, em uma escala de gravidade, é o pior dos cenários. Ela acontece quando uma epidemia se estende a níveis mundiais, ou seja, se espalha por diversas regiões do planeta. Em 2009, a gripe A (ou gripe suína) passou de uma epidemia para uma pandemia quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) começou a registrar casos nos seis continentes. E, em 11 de março de 2020, a Covid-19 também passou de epidemia para uma pandemia.
Endemia: A endemia não está relacionada a uma questão quantitativa. É uma doença que se manifesta com frequência e somente em determinada região, de causa local. A febre amarela, por exemplo, é considerada uma doença endêmica da região norte do Brasil.
Neste atual contexto, sempre oportuno lembrar das lições do pensador e filósofo chinês Confúcio, falecido em 479 a.C., que deixou registrada em sua obra a importância do estudo do passado para fins de previsão dos acontecimentos futuros. Tal pensamento não poderia fazer mais sentido quase 2,5 mil anos depois de sua morte, afinal, enfrentamos hoje uma situação semelhante àquela que vivemos em 2009, na pandemia de H1N1.
Aliás, acerca da pandemia de H1N1, em decisão proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho, nos autos do processo RR-100800-30.2011.5.17.0009, ficou estabelecido o nexo de causalidade entre o H1N1 e as atividade de uma enfermeira empregada num determinado hospital de combate ao câncer. O voto do relator, ministro José Roberto Freire Pimenta, foi no sentido de que nas circunstâncias específicas do processo, em que a empregada era técnica de enfermagem e foi acometida por doença de fácil contaminação, o hospital, ao sustentar o afastamento do nexo de causalidade, atraiu para si o ônus de provar o contrário, e não o fez.
Naquele processo, inclusive, a reclamante sustentou que a ex-empregadora teria sido negligente quanto às medidas de segurança e de prevenção. Além disso, afirmou que o hospital não prestou a assistência necessária. E, ainda, invocou subsidiariamente a teoria do risco da atividade explorada pela reclamada para caracterizar a responsabilidade objetiva do empregador.
A defesa, ao contrário, foi no sentido de que não haveria responsabilização do empregador em situação de pandemia, tanto é verdade que, à época, mobilizou-se até mesmo o poder público no combate à propagação do vírus H1N1. Além do mais, sustentou o hospital a ausência de prova de que a trabalhadora tivesse contraído o vírus no ambiente de trabalho.
Entrementes, a decisão proferida pelo TRT, e confirmada pelo TST, definiu que a empresa explorava atividade de risco (agentes biológicos diversos) e que, por isso, deveria responder objetivamente pelo dano causado aos herdeiros da trabalhadora, que veio a falecer. Valeu-se, ainda, do disposto no artigo 2º da CLT, segundo o qual o empregador assume os riscos do negócio.
Em outras palavras, mesmo não havendo nos autos informação segura se o agente agressor (vírus H1N1) realmente adveio do ambiente insalubre em que trabalhava a enfermeira, também não havia como descartá-lo em razão do risco inerente à atividade exercida pelo hospital em relação à exposição de seus trabalhadores aos agentes biológicos. Logo, o hospital atraiu para si o ônus de prova pela exclusão do nexo causal em razão da aplicação da responsabilidade objetiva, cuja culpa patronal é presumida quando o empregado labora em atividade de risco.
Bem por isso, como aqui pensamos, comprovada a não observância das regras de segurança, por conduta negligente da empresa, colocando em risco a integridade física dos seus empregados, há nexo causal apto a imputar a responsabilidade empresa pela ocorrência da doença ocupacional. Contudo, se na particularidade do caso, por exemplo, ficar evidenciada a culpa exclusiva da vítima por ter contraído Covid-19, naturalmente rompe-se o nexo de causalidade, afastando o coronavírus como doença equiparada a acidente do trabalho.
Pelo exposto, em situação semelhante à que vivemos hoje, no passado, a visão era no sentido de que havia de ser demonstrado o nexo de causalidade para fins de aplicação da natureza acidentária à contaminação de empregado por doença pandêmica. Ressalva feita, porém, às situações em que determinada empresa exercesse algum tipo de atividade que, por sua própria natureza, pudesse se presumir a exposição do trabalhador ao vírus, como é o caso das atividades hospitalares em geral. Hipótese essa em que, excepcionalmente, inverter-se-ia o ônus probante em razão da teoria do risco.
Em arremate, conquanto o artigo 29 da MP 927 tenha sido suspenso por decisão Plenária do E. STF, entendemos que a visão da Justiça do Trabalho no passado (H1N1) deve ser aplicada no atual momento (Covid-19). Logo, deve-se exigir, regra geral, o nexo de causalidade, na forma do que dispõe a Lei 8.213/91, para fins de justificar o coronavírus como doença equiparada a acidente do trabalho. Pensamento em sentido contrário, em nossa visão, seria imputar prova impossível (negativa) às empresas que, na forma da lei, devem fazer provas de fatos positivos (v.g., tomadas de medidas preventivas no meio ambiente laboral). A presunção de culpa empresarial, porém, só deve ser admitida em casos de atividades de risco, e não essenciais reconhecidas atualmente pelas autoridades públicas, a exemplo dos profissionais de saúde que laborem em hospitais.
[1] https://www.telessaude.unifesp.br/index.php/dno/redes-sociais/159-qual-e-a-diferenca-entre-surto-epidemia-pandemia-e-endemia.
Publicado na Revista Consultor Jurídico (Conjur)
Por:
Maurício Pallotta é advogado atuante na área trabalhista individual e coletiva empresarial, sócio fundador do escritório Pallotta, Martins e Advogados e da STLaw, palestrante, instrutor in company, mestre em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de São Paulo e especialista em Direito Previdenciário Empresarial.
Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, especialista nas Relações Trabalhistas e Sindicais, organizador do e-book digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhista” (Editora JH Mizuno), palestrante e instrutor de eventos corporativos “in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe.